#180 | JULHO DE 2023

“Lembro perfeitamente minha primeira experiência em casa com um computador (um 486) e uma linha discada de internet: comecei a fuçar, a clicar, e quando me dei conta estava vendo passar carros numa esquina de Dublin.”

(Advertência: este texto tem gatilhos que podem ofender os inimigos da lentidão.)

“O mundo anda muito contemporâneo” foi uma frase que eu inventei esses tempos para tentar expressar, em tom de brincadeira, a perplexidade que um homem de terceira idade como eu experimenta hoje em dia. (Digo “terceira idade” e logo um diabinho por sobre o ombro lembra: “branco, hétero, cis”. Verdade. Tudo isso e mais um tanto de privilégios, como o de ser colorado, ter um excelente emprego e ter encontrado bem cedo um caminho profissional que me realiza plenamente.) 

(Escrevi “diabinho” e já outro diabinho, quer dizer, outro ser evanescente me lembra que pode ser ofensivo para algum esquadrão de justiça chamá-lo assim. Mas eu preciso sair de dentro de parênteses!) 

É a marcha do tempo, com suas incontáveis facetas. Me ocorre agora lembrar do primeiro semestre da pandemia, que foi todo um mergulho em dimensões inesperadas de tempo, de passagem do tempo. Um dos bloqueios fortes que experimentei me surgiu na consciência só depois: ocorre que os campeonatos de futebol foram suspensos naqueles meses iniciais; e quando foram retomados os jogos me veio uma alegria interior profunda que tinha a ver com a consciência da passagem do tempo – para um torcedor como eu, a existência de jogos do meu time, um no meio da semana, outro no final de semana, regula a minha vida com uma intensidade que nunca tinha me ocorrido. 

Esperar pelo jogo seguinte, ler as opiniões, frequentar aquela conversa mole, aquela espuma que logo se desfaz mas que para quem gosta tem muita graça, tudo isso marca a passagem do tempo, muito, muito, muito. Muito mais do que eu sabia. 

Esse negócio de o mundo andar muito contemporâneo tem uma parte de piada e outra de seriedade. Escrevi sobre isso de muitos modos, mais de uma vez, envolvendo vários contextos. O primeiro deles: minha geração acompanhou a derrocada da ditadura militar instalada em 64, e viveu intensamente a redemocratização, entre 1980 e 1990 e poucos. No campo cultural, esse momento foi intensamente novidadeiro – muita coisa que a ditadura cerceava, muitas obras de arte, muitas iniciativas, tudo isso veio à tona naquele lindo tempo.

Em Porto Alegre, minha geração viveu isso na forma de uma catadupa de ações culturais em todos os campos, do teatro à canção, da literatura à fotografia, do cartum à dança, em todas as linguagens pudemos expressar nossa visão das coisas. E contamos com caminhos abertos arduamente por gente da geração anterior, gente da política cultural que liderou e representou o processo, como Lígia Averbuck, Luiz Paulo de Pilla Vares, Carlos Jorge Appel, para ficar em alguns nomes de alto valor. 

A imprensa cultural viveu um auge: os jornais médios e grandes mantinham suplementos semanais que abrigavam resenhas, debates, traduções novas para clássicos, ousadias formais inéditas, cobertura de shows e espetáculos, um sem-fim de novidades. Lembro, como leitor, de ficar um tanto acachapado pela quantidade de livros interessantes que começaram a ser lançados ou relançados, em descobertas e revisões críticas que não paravam de instigar nossa percepção. 

Logo veio outra onda, outro tsunami: na virada dos anos 1980 para os 1990, acabava a Guerra Fria, o contexto global que organizou o horizonte da geração toda. Não foi, para mim, um problema grave o fim da União Soviética, porque eu nunca fui fiel da igreja leninista; e foi sim para mim uma beleza a Queda do Muro de Berlim, símbolo de uma violência palpável. O fenômeno ganhou o nome fácil de Globalização. Era mesmo o “fim da história”? Se fosse, o que estávamos fazendo aqui ainda? Vou poupar o eventual leitor de muitos outros detalhes.

Era pouco? Não, já era muito. Mas estava longe de ser tudo, porque nos anos 90 apareceu o computador pessoal, revolucionando todo o mundo do trabalho, extinguindo profissões e criando outras, envelhecendo subitamente uma fatia considerável da população e, com a internet, oferecendo acesso a, meu deus, a tudo! Lembro perfeitamente minha primeira experiência em casa com um computador (um 486) e uma linha discada de internet: comecei a fuçar, a clicar, e quando me dei conta estava vendo passar carros numa esquina de Dublin, por meio de uma câmera de segurança. 

Foi uma verdadeira vertigem. Recordo perfeitamente que parei, recuei uns centímetros e, sem ter alguém com quem compartilhar a cena imediatamente, abri e fechei a boca. Em seguida entrei no Louvre e em mais uma série de cavernas de ali-babá. Não tinha Google ainda, mas tinha o Altavista, e dentro dele o acesso a jornais, notícias, textos soltos, livros inteiros. 

Uns 15 anos atrás veio o smartphone, botando tudo isso – e muitíssimo mais – na minha mão, 24 horas por dia, sete dias por semana, para sempre. Orkut, Facebook, Instagram, Tik-Tok. Cada vez tudo muito mais acessível, cada vez tudo muito mais… rápido. 

Cena final: eu convenço meus filhos, adolescentes, a ver comigo um filme clássico. Um grande filme, um inquestionável maravilhoso sensacional inesquecível imperdível filme. Me encho de alegria antecipada e provavelmente cometo o erro de insuflar neles uma grande expectativa. 

Preciso dizer que foi frustrante? 

Uma cena que demore mais de 5 segundos, um passeio de câmera que não balance e acompanhe um cenário ou um personagem para oferecer densidade, profundidade, ambição narrativa para além da sucessão de peripécias, qualquer coisa dessas gera uma insatisfação não apenas visível como irresistível. E já o celular abastece o vício, estancando a carência de cenas em sucessão veloz. 

Foi bom. Não é mais. 


Luís Augusto Fischer é escritor, professor do Instituto de Letras da UFRGS e fundador da revista Parêntese. Atualmente, está passando um semestre como professor convidado em Princeton, USA. Seu mais recente livro é A ideologia modernista: a Semana de 22 e sua consagração (Todavia).

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