Praça Raul Pilla, da série Epigrama, de Manoela Cavalinho, artista convidada do Ensaio Visual desta edição

#180 | JULHO DE 2023

“Eu poderia dizer que a memória é o tema, talvez a obsessão, da minha vida”
Praça Raul Pilla, da série Epigrama, de Manoela Cavalinho, artista convidada do Ensaio Visual desta edição

Jornalista, professor, historiador e escritor, eu poderia dizer que a memória é o tema, talvez a obsessão, da minha vida. A memória e o tempo, que são duas maneiras de dizer a mesma coisa. Escrevi três livros que se remetem diretamente à memória e ao tempo: A memória e o guardião: em comunicação com o presidente da República: relação, influência, reciprocidade e conspiração no governo João Goulart (Civilização Brasileira, 2020), o romance Memória no esquecimento (Sulina, 2021) e Quase (toda) poesia (Sulina, 2022). De que tratam esses livros?

A memória e o guardião trata da relação de fidelidade entre Wamba Guimarães e João Goulart. Wamba era responsável por parte da correspondência de Jango. Quando o presidente precisou sair do Brasil, acossado pelo golpe midiático-civil-militar de 1964, pediu ao assessor que escondesse o material de que se ocupava. Wamba refugiou-se na cidade de Arujá, em São Paulo, com duas malas de cartas, que protegeu por meio século, até morrer. Analisei esse acervo, adquirido pelo Instituto Unimed Federação RS, com a alegria de um arquivo em casa. Começa assim: 

O que esconde o arquivo guardado por Wamba Guimarães por cinco décadas como uma relíquia venerada? O guardião da memória manteve no seu quarto as duas malas com os papéis de João Goulart. O uso da palavra “arquivo” dá evidentemente uma dimensão especial ao conjunto de documentos preservados pela fidelidade de um homem. Wamba viu, sem revelar seu segredo, a ditadura instalar-se, endurecer-se, enfraquecer-se e terminar. No primeiro ano depois do golpe, escondeu-se, separado da família. Só depois desse estágio na clandestinidade é que se fixou com os seus em Arujá para viver discreta e pacificamente”. 

Proteger a memória foi a sua missão na vida. 

Memória em perdição

Dei um pulo novamente para a ficção e escrevi Memória no esquecimento, história de um homem sendo roído pelo Alzheimer: 

O que é mais doloroso: não conseguir esquecer ou não conseguir lembrar? Não sei. Eles não sabem, mas eu sei que ele se lembra de uma parte considerável, uma parte enorme, quero dizer, do que viveu quando criança. Na verdade, não consegue se esquecer dessa memória absoluta na falta quase total de lembranças. Quase tudo lhe escapa. Algo lhe sobra. Sabe, às vezes, que está sozinho nesta clínica, que chamam de casa de repouso e até mesmo de Jardim da Melhoridade, e que daqui não vai sair. Só no caixão. Um caixão pelo qual anseia, quando se lembra quem é, embora não tenha um só conhecido para segurar as suas alças. Ouço conversas sobre o seu estado de saúde. Em seguida, tudo se apaga e tudo se ilumina num tempo inesquecível. O tempo dele”. 

Perder a memória presente afundou-o nas lembranças obsessivas de um passado que se tornou sem qualquer sentido. O tempo virou doença.

Poesia como enraizamento

Aí o leitor pergunta: como eu me situo pessoalmente em relação ao tema da memória? O que na questão do tempo me obceca? Como o tratamento da memória na história e não ficção se articulam na minha poesia? Assim:

Infância

Eu perseguia imagens no céu
Moldando nuvens com o pensamento.
Vez ou outra, na clausura do tempo,
Surgia o eterno num fragmento.

Então o azul e o verde do campo
Fundiam-se como uma mata densa,
Ritmando uma luz nua e intensa,

Até cair dos meus olhos o véu,
A lua, o brilho, o tampo.

Eu me extraviava no infinito,
Iluminando estrelas ao léu,
Apagando o dia,

Até onde a noite,
Essa vadia,

Se esconde do futuro
Na memória do escuro.

Contratempo

O tempo é o senhor das horas que nunca passam.
São apenas os anos e os invernos que nos abraçam,
Vestindo jeans com buracos, o cabelo desbotado.

Tempo, tempo, tempo, seu maldito velho safado,
Há quanto tempo eu não paro para te contemplar.
Ah, eu só queria ter uma janela aberta ao poente
De onde pudesse todos os dias te ver definhar.

Ou um relógio de longos ponteiros e sombras frias
Para te congelar ao cair lento da tristeza dos dias,
Tendo às minhas costas o vinho e a escova de dentes.

O hálito do tempo é sempre mais pesado,
Quanto mais nós passamos, mais ele perde o frescor.
A sina do tempo, na sua imobilidade eterna, ardido
É simplesmente nos encher de um líquido pavor.

Tempo perdido, tempo esquecido, tempo vendido.
O tempo não passa de uma falsa ampulheta
Pingando uma gosma velha na tarde solitária.
O tempo é senhor das horas que ele mesmo não passa.
Nós é que passamos por falta do que fazer.

*

Nada nos engana mais do que a memória.

Tempo perdido tentar salvá-la ou salvar-se dela.


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