Foto: Miguel Pedroso/Pexels

#180 | JULHO DE 2023

Doenças que corroem nossas lembranças, como o Alzheimer, já impunham um dilema filosófico: quanto de nossa identidade depende da memória e, ao perdê-la, em que momento deixamos de ser nós mesmos? A tecnologia aprofundou a preocupação: com a guarda de nossos registros “terceirizada” a servidores virtuais, a memória – e o entendimento de quem realmente somos – pode ter se tornado muito mais tênue do que parece
Foto: Miguel Pedroso/Pexels

Em 1991, o neurocirurgião estadunidense Andrew Firlik publicou um artigo sobre uma senhora de 55 anos que vivia com Alzheimer. Padecendo da corrosão da memória, Margo não conseguia guardar o nome do médico que a visitava regularmente, pintava todos os dias a mesma figura e abria seu romance de cabeceira em uma página diferente a cada vez – com frequência, relendo a mesma história de novo e de novo, a cada dia redescobrindo o mistério que já havia desvendado na véspera. Apesar do que poderia parecer à primeira vista, Firlik chegou a uma conclusão surpreendente: Margo era uma das pessoas mais alegres que ele conhecera.

Poderia ser apenas um relato sobre conviver da melhor maneira com uma doença neurodegenerativa, mas dois anos depois um filósofo chamado Ronald Dworkin resolveu colocar um problema na história: ele convidou seus leitores a imaginar que Margo, ao contrário, não tivesse sido uma pessoa tão feliz assim antes de descobrir a doença. Mais do que isso, ele sugeriu imaginar que ela talvez pudesse até mesmo ter desejado não viver mais caso recebesse um diagnóstico de Alzheimer, pedindo para não receber o tratamento que prolongava sua vida enquanto ela ficava cada vez mais afastada de suas memórias e sua identidade. 

Dworkin então questionou: nesse cenário hipotético, quem tinha direito de tomar a decisão? A Margo de antes ou a Margo “feliz” do depois? E como traçar o ponto em que a Margo anterior e suas vontades deixaram de existir em função da doença?

Seja para desempenhar ações cotidianas ou tomar decisões complexas, a memória serve de base para agirmos no dia a dia e construirmos nossa identidade. No campo da filosofia, essa importância rendeu longas discussões éticas – e Margo é um exemplo da dificuldade de resolver o dilema. Onde começamos e onde acabamos? Com ou sem Alzheimer, ainda é impossível determinar o momento exato em que nossa vida muda a partir de algum acontecimento ou escolha. Mas a interação entre biologia e ambiente que constitui nossa memória levou outros estudiosos a questionarem se, com o advento da internet, de celulares e de computadores, estamos passando por uma alteração significativa o suficiente para mudarmos quem somos.

A memória está diferente, mas também é a mesma 

O cientista Andy Clark já propunha, em 2003, que o uso de dispositivos digitais havia criado uma “mente ciborgue”. Em vez de chips implantados no cérebro, como previa a ficção científica, “ampliamos” nossa memória fazendo uma espécie de terceirização do armazenamento ao guardar fotografias, números de telefone, textos e dados no celular, em cartões de memória, em servidores na nuvem… 

Em 2015, um levantamento produzido pela empresa de segurança cibernética Kaspersky acusou o uso indiscriminado de celulares de afetar nossa capacidade de memorização: na pesquisa, um terço dos entrevistados disse que costumava acessar o Google antes mesmo de fazer esforço para lembrar de uma informação, e só a metade dos participantes sabia de cor o telefone do cônjuge.

Mas a biologia da memória não mudou. “Os mecanismos que nosso cérebro usa para acessar, perceber, processar e armazenar informação são os mesmos há centenas de milhões de anos. Isso não vai mudar de uma geração para outra”, diz o neurocientista Martin Cammarota, coordenador do Laboratório de Pesquisas da Memória no Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A mente armazena mais facilmente e por maior tempo informações que se sobressaem e se diferenciam das outras – não necessariamente aquilo que vai ser mais útil no futuro. 

Não lembrar um número de telefone, portanto, é normal e não significa que nosso cérebro se tornou menos capaz. Debates sobre o impacto negativo de conservar a memória e o conhecimento “fora” de nossa cabeça existem desde a invenção da escrita, e devem seguir ocorrendo a cada nova tecnologia. “O que muda é a forma como interagimos com a informação”, completa Cammarota. 

“O que o digital fez foi proporcionar de uma forma nunca antes vista a capacidade das pessoas de terem agência sobre suas próprias histórias e memórias”, explica Ian Marino, pesquisador da área de história e arquivos digitais na Universidade de Campinas (Unicamp). O doutorando dá um exemplo da inovação: se, em 1993, encontrássemos uma carta de um avô que foi preso político durante a ditadura e quiséssemos tornar esse documento público, seria necessário contatar um museu; hoje, nosso primeiro instinto seria fazer uma postagem em uma rede social. 

Colocar a possibilidade de arquivar e publicar documentos à mão dos usuários modifica a própria noção de patrimônio, memória e história que se tinha até então. Mas uma maior autonomia não se traduz em conteúdos de mais qualidade. Diferente da História como disciplina, que é metódica e precisa ser transparente quanto a fontes usadas, a memória compartilhada na internet não precisa de comprometimento com a precisão. 

“O lado positivo desse processo é a democratização do acesso à informação, mas não há nenhum controle de qualidade. É um paradoxo: jamais tivemos acesso a tanta informação mas nunca se aprofundou tão pouco”, destaca Cammarota.

Registros públicos em mãos privadas 

A mediação das empresas gigantes de tecnologia faz com que uma maior capacidade de compartilhamento não signifique, necessariamente, um potencial maior de preservação da informação a longo prazo. “O funcionamento de redes sociais de repositórios, como o Spotify, mimetiza um arquivo, porque eles organizam seus materiais, criam categorias, têm ferramentas de busca. Na verdade, elas não são arquivos, mas empresas privadas que têm uma lógica de comportamento própria”, pontua Marino. E isso traz um problema fundamental: ninguém, além da própria companhia, realmente tem controle sobre a permanência do que é guardado em seus servidores.

Assim como Margo não conseguia controlar quais memórias e partes de sua identidade seriam levadas pelo Alzheimer, a autonomia no ambiente digital é mais limitada do que parece. Em alguns casos, dados são armazenados mesmo sem o seu consentimento: trajetórias no Google Maps, históricos de pesquisa, microinformações sobre o comportamento em redes sociais. Em outros, arquivos relevantes podem ser deletados sem aviso algum. 

Nos Estados Unidos, a política de combate à pornografia do Google gerou efeitos colaterais inesperados e tornou a empresa alvo de críticas, após dois casos de perda de dados. Um pai que fotografou o filho nu para enviar a imagem em uma teleconsulta durante a pandemia teve o acesso bloqueado à sua conta Google e tudo vinculado a ela, inclusive ao seu número de telefone, e enfrentou uma investigação policial por suposto compartilhamento de pornografia infantil. Já uma mãe foi banida da plataforma depois que o filho pegou seu celular e fez um streaming de si mesmo, nu, por acidente, no Youtube. Depois da publicação dos casos no New York Times, o Google passou a permitir que usuários questionem a decisão de excluir suas contas. 

Nesses casos, a perda significou o sumiço de centenas de emails de trabalho, de milhares de fotografias de família e de documentos importantes. Em um nível coletivo, arquivos assim talvez não façam falta a longo prazo. Nem tudo precisa ser eternamente guardado – esquecer é um processo natural (que ocorre mesmo se você não tiver uma doença neurodegenerativa) e não controlamos o que vai perdurar ou não. “Você pode até tentar, mas existem mecanismos que filtram a informação e selecionam o que vai ser guardado na memória. Não há uma regra geral – muda de indivíduo para indivíduo e de situação para situação”, como explica Cammarota.

Mas com a interface com plataformas privadas, na internet, a exclusão de arquivos pode ocorrer de forma deliberada – e ter impactos políticos. O Facebook, por exemplo, já foi alvo de críticas de ativistas de movimentos como o Black Lives Matter, que tiveram registros de protestos deletados das suas contas na rede social. Conteúdos críticos a Donald Trump também foram alvo das políticas da corporação. 

A ideia de que as publicações de redes sociais têm relevância para a memória social levou à criação de projetos como o da Biblioteca Nacional do Congresso dos Estados Unidos, que tenta arquivar o Twitter (atual X). Além de registros cotidianos, a plataforma é palco para pronunciamentos – figuras públicas como os ex-presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos em que perfis pessoais fizeram postagens equivalentes a um comunicado oficial de governo.

“A grande dificuldade é que arquivar não é tirar um printscreen de uma tela – envolve, de alguma maneira, manter o contexto da produção de um documento. E esse contexto faz parte de uma lógica de uma empresa privada”, destaca Marino. Além de não se ter acesso às dinâmicas do algoritmo que estão por trás da exibição – e da popularidade – de cada conteúdo, é difícil arquivar manifestações colaborativas na rede. 

As plataformas estão sujeitas a mudanças de software e de estrutura constantes, que geram o chamado bit rot – degradação dos dados que prejudica o armazenamento a longo prazo. No Google ou no Twitter, por exemplo, é possível solicitar o download de todos seus registros pessoais na plataforma. Contudo, os formatos desses arquivos muitas vezes só podem ser lidos dentro do próprio site. 

Por mais que se alerte para o fato de que a “internet nunca esquece”, na prática a história é diferente – muitos dados já não são recuperáveis. Se você não solicitou o download dos seus dados no Orkut, por exemplo, não tem como reler o depoimento que uma amiga deixou no seu mural em 2010. O Orkut foi a rede social mais utilizada do Brasil na segunda metade dos anos 2000, antes da ascensão do Facebook, e uma grande parte da memória em comum da internet nacional se perdeu quando a plataforma anunciou o fim das atividades. Não é o único caso. As mensagens trocadas no MSN, serviço da Microsoft encerrado em 2013, também não podem mais ser lidas outra vez. 

Na metade de agosto, um problema no X levou à exclusão sem aviso prévio de todas as mídias fotográficas postadas na rede entre 2011 e 2014. Elas voltaram alguns dias depois, mas deram outro aviso da impermanência da memória em rede: sejam memes ou arquivos históricos, nossas lembranças deixadas na mão de uma empresa de tecnologia podem ser deletadas do dia para a noite. E os casos passados servem de alerta para hipóteses futuras: digamos que, até o fim do século, não reste nenhum software capaz de ler ou converter os arquivos em PDF que utilizamos hoje nos mais diversos contextos, da publicação de livros digitais a processos judiciais, de contratos a propostas de governo. Bilhões de documentos que só existem nesse formato se tornariam inacessíveis às gerações futuras.

Entre a democratização e a impermanência

Pesquisadores ainda não chegaram a um consenso sobre a melhor forma de preservar memórias digitais a longo prazo. Seriam necessários repositórios que, ao mesmo tempo, mantivessem o caráter colaborativo que as redes sociais proporcionam e fossem verdadeiramente democráticos – com código aberto e garantia de permanência. “O papel das instituições é reforçado porque é muito difícil manter arquivamento, preservação digital em longa duração: você precisa ter uma política de gestão de dados, de checagem, de backups. É um processo muito complexo, exige não só infraestrutura como custa muito dinheiro”, explica Marino.

Durante a pandemia, surgiram muitas iniciativas digitais que coletaram e reuniram depoimentos sobre o cotidiano em isolamento, além de publicarem obituários e informações sobre pessoas vitimadas pela covid-19. O projeto Coronarquivo, conduzido pelo grupo de pesquisa do qual Ian Marino participa, mapeou as iniciativas de memória da pandemia, e mostrou que muitos dos projetos já estão inacessíveis, apenas três anos mais tarde.

A longo prazo, medidas de gestão de dados devem ser adotadas para que essas memórias não se percam no digital. Não é que o perigo seja uma ameaça nova: em museus e instituições de memória físicas, artefatos também podem ser perdidos, enfrentar processos de corrosão ou, até mesmo, acabar deliberadamente destruídos com motivações políticas, religiosas ou – de forma mais simples – orçamentárias. Em 2018, o incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, destruiu milhões de itens físicos, por exemplo. 

Internacionalmente, já existem casos de tentativas de preservação digital. Em 2019, o Museu da Pessoa, iniciativa virtual colaborativa que coleta histórias de vida de brasileiros, enviou 12 histórias de lideranças indígenas e mais 100 horas de entrevistas para o Arquivo Ártico Mundial. A ideia é armazenar documentos da memória digital mundial em um cofre à prova de desastres na Noruega, para garantir a preservação. 

Mas para grupos historicamente marginalizados e excluídos de acervos tradicionais, a autonomia e o controle – mesmo que relativos – presentes em arquivos digitais pesam mais do que a segurança das instituições públicas. Arquivos relacionados a movimentos sociais – negros, indígenas, LGBT+ – preferem, pelo menos em um primeiro momento, manter sua independência do que ter, supostamente, a preservação a longo prazo dos documentos garantida.

No livro An Archive of Feelings, a professora estadunidense e pesquisadora da história oral Ann Cvetkovich narra a entrevista com Maxine Wolf, voluntária do Lesbian Herstory Archive – um arquivo formado por décadas de documentos reunidos por mulheres lésbicas radicadas em Nova York. O mais comum era que esse tipo de arquivo fosse armazenado na casa de algum voluntário do movimento – muitas vezes de forma precária. No final dos anos 1980, o interesse de instituições públicas em colaborar com arquivos LGBT+ ou mesmo abrigá-los, alegando uma maior segurança, aumentou. Mas esse movimento não foi livre de críticas. 

“Deixa eu te explicar sobre a segurança: segurança significa que, se houver um incêndio, alguém vai querer salvar teus papéis. Na Lesbian Herstory Archive, há 25 mulheres que colocariam suas vidas em risco para salvar essas coisas”, relatou Maxine. 

Sejam papéis ou PDFs – ainda não há uma solução fácil para a terceirização dos arquivos a nível individual, em nuvens e plataformas de redes sociais, ou de forma coletiva. Assim como é difícil encontrar uma solução para o dilema de Margo e traçar onde começam as memórias da mulher e onde termina a corrosão da doença, é complexo delimitar o quanto nossa memória pessoal e social se tornou dependente de arquivos digitais – e o que pode mudar sobre como nos vemos e nos entendemos no mundo se, digamos, amanhã todas as nossas postagens do Instagram ficassem inacessíveis para sempre. 

Para Marino, “a possibilidade das pessoas de participarem dessa escolha é o que vai gerar uma noção de relevância que vai formular uma nova visão de patrimônio no mundo digital”. Seja porque um vírus destrói arquivos ou uma doença atinge os neurônios, nem sempre podemos decidir o que guardar – mas o que fica e o que é esquecido são bases para novas formas de estar no mundo.


Valentina Bressan é repórter da Fronteira, estúdio especializado em reportagens. Tem textos publicados no Matinal, ((o))eco, e nas revistas Claudia, Veja Saúde e Crescer.

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