Desenho de Lara Fuke, artista convidada do Ensaio Visual desta edição

#180 | JULHO DE 2023

Os argumentos de que o humor está ficando chato são tão antigos quanto a humanidade. Mas outro fator, aparentemente maior, se sobrepõe: como a dinâmica digital e a internet podem estar alterando a forma como rimos?
Desenho de Lara Fuke, artista convidada do Ensaio Visual desta edição

Em 22 de maio de 2005, o jornalista Warren St. John publicou, no New York Times, o obituário da piada. Foi uma forma divertida de chamar atenção para que fazer uma brincadeira sobre algo ou com alguém se tornara um negócio arriscado. Não só devido ao risco intrínseco de qualquer piada, o de não ter graça nenhuma, como pelo fato de, agora, ela pegar mal. “A piada morreu uma morte solitária”, escreveu. Entre as razões, St. John listou desde a ameaça da bomba atômica, passando pela digitalização da vida até o politicamente incorreto, que colocou um – necessário – freio nos chistes que davam uma roupagem engraçada a velhos preconceitos. 

Mas, claro, era uma hipérbole: nesses 18 anos transcorridos desde a “morte” da piada, você deve ter rido muito. Talvez um certo tipo de piada tenha morrido mesmo, por todos aqueles motivos citados por St. John. Mas o fato é que rir é inato, mas também é aprendido. Talvez esteja aí a razão primordial de certas piadas morrerem mesmo. E precisarem morrer. 

Apesar de andarem lado a lado no imaginário social, humor e piada são conceitos bastante diferentes. Afinal, nem sempre que ouvimos uma piada rimos; e nem sempre que rimos é porque ouvimos uma piada. Mas o jogo simbólico promovido por ambos se assemelha bastante. “A essência da piada é dizer que está tudo bem. Cria-se uma apreensão em relação a algo e, na sequência, é revelado que não é preciso se preocupar”, explica o psiquiatra Daniel de Barros, autor do livro Rir é Preciso (Ed. Sextante, 2022). Para Barros, o grande ativo do humor é que ele se desencadeia a partir da quebra de expectativas. 

Platão e Aristóteles, filósofos da Grécia Antiga, deixaram registros de que o humor talvez seja até anterior ao ser humano. Platão acreditava que por trás do humor sempre existia uma malícia ou inveja, enquanto Aristóteles considerou a comédia “uma imitação de homens piores do que a média”. O humor, para ambos, advinha da possibilidade de fazer o outro de ridículo e deslocado. A ideia ficou conhecida como teoria da superioridade, e pode explicar o humor presente em muitas das piadas que escutamos ao longo da vida. Outra corrente, a teoria da incongruência, defende que o riso surge daquilo que é novo ou inconsistente com seus esquemas prévios. Isto é, rimos do que foge ao nosso padrão de antecipação das ações. Já Freud, pai da psicanálise, defendeu que o riso seria um alívio da energia nervosa que acumulamos: a risada, nesse caso, seria proporcional à tensão criada naquela situação. 

Apesar de nossa estreia no mundo ser com o choro, o sorriso chega já nos nossos primeiros meses de vida. A risada costuma encontrar os bebês perto dos 18 meses, embora ainda não esteja relacionada à presença de um senso de humor. Quem já viu uma criança rir talvez concorde que esse é o momento em que elas descobrem, além da risada, o poder do seu charme. É difícil resistir à cena dos pequenos se deliciando com essa sensação inédita. “O riso é algo fisiológico: toda criança vai aprender a sorrir. O humor é mais adiante, é uma capacidade simbólica que as crianças vão aprendendo”, explica Abrão Slavutzky, psicanalista e autor do livro Humor é coisa séria (Arquipélago, 2014). 

“Culturalmente, aprendemos do que rir. Somos ensinados, informalmente e inconscientemente, do quê e quando podemos rir”, afirma Daniel de Barros. Rir, portanto, é uma capacidade inata, que aprendemos naturalmente. O nosso senso de humor, por outro lado, se desenvolve ao longo do tempo, associado ao domínio da linguagem. “Com o aprendizado das palavras, as crianças vão desenvolvendo lentamente a capacidade do humor”, resume Slavutzky. 

Oxigenando a vida

Você provavelmente já escutou de alguém que “rir é o melhor remédio”. O clichê, nesse caso, pode ter explicação científica. A risada é capaz de ativar diferentes áreas do nosso cérebro: o córtex, responsável pelo controle e execução dos músculos; o lobo frontal, onde acontece o planejamento de ações e movimento e por onde circula o pensamento abstrato; e o sistema límbico, também chamado de cérebro emocional, responsável pela modulação das emoções positivas. Rir, apesar de natural, é um exercício complexo para o nosso cérebro. 

Na Coreia do Sul, pesquisadores da Universidade Sahmyook investigaram os benefícios fisiológicos da terapia do riso, utilizada no cuidado de pessoas enfrentando situações de sofrimento – e cujo objetivo, aparentemente simples, é exatamente aquele que o nome sugere: provocar o riso. O estudo mostrou que rir diminui os níveis de cortisol e epinefrina, hormônios associados à raiva e ao estresse, enquanto aumenta a secreção de endorfina, que proporciona relaxamento muscular. O humor ainda diminui a pressão arterial e melhora a insônia e a capacidade de memória. 

Em uma sociedade que vê os números de adoecimento relacionados a transtornos mentais cada vez mais altos, rir pode mesmo ser um bom remédio. Estima-se que cerca de 300 milhões de pessoas enfrentam a depressão no mundo todo. “Mais pessoas com depressão, significa menos pessoas rindo. E é paradoxal, porque uma sociedade com mais depressão é uma sociedade que precisa rir mais”, afirma Barros.

Se estivéssemos rindo mais como um todo, é bem possível que os benefícios também fossem sentidos de forma comunitária. Um exemplo: Robert Provine, professor da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, conduziu uma pesquisa que demonstrou que rimos 30 vezes mais quando estamos acompanhados de outras pessoas do que quando estamos sozinhos. “O humor é tanto individual, porque cada ser humano é um, mas também é em grupo, porque o riso é contagioso”, explica Abrão Slavutzky.  

Humor em transformação

O fim da piada, abordado no obituário escrito por Warren St. John em 2005, pode representar outra preocupação: que o senso de humor das pessoas está mudando. Para além dos argumentos que afirmam que a sociedade está muito chata, é possível que a forma como enxergamos (e praticamos) o humor esteja mesmo diferente? 

“Claro, há novidades. Os vídeos muito curtos, por exemplo, precisam mostrar graça cedo e influenciam a nossa percepção da risada”, comenta Barros. Provocar uma risada em outra pessoa exige a preparação de um cenário, com a construção de uma expectativa que não será consumada. Com a popularização de vídeos muito curtos, em redes como TikTok e Instagram, a quebra de expectativas precisa acontecer de forma mais rápida – já que o tempo disponível é menor. E, em um sentido oposto, nossa capacidade de atenção vem sendo reduzida por essa nova dinâmica: uma piada que exige longos minutos para chegar ao momento da graça até pode funcionar (ainda) em um show de stand-up, mas a tendência é que você simplesmente passe para o próximo vídeo se a história se alongar demais na tela do celular.

“O humor está sempre mudando, desde sempre. Desde os homens da caverna até o último algoritmo”, afirma o psiquiatra. Assim foi com a  invenção da prensa de Gutenberg em 1450, que permitiu a impressão de livros e panfletos em massa. Naquela época, a nova tecnologia permitiu que o humor deixasse de ser transmitido exclusivamente de forma oral e se desenvolvesse também através da linguagem textual. Mais tarde, no século 19, quando o rádio se popularizou, mais uma mudança se aproximava: a oralidade ganhou o centro do jogo outra vez. Agora, ao invés de falar para poucas pessoas, são dezenas de milhares, até milhões, ouvindo ao mesmo tempo.  

Os memes que circulam nas redes sociais são outro grande exemplo da mudança prática gerada pela internet – não na forma como rimos, mas nas dinâmicas sociais que proporcionam o nosso riso. Além de terem criado uma linguagem própria, os memes transcendem culturas enquanto criam identidades coletivas. A estratégia, apesar das novidades, é muito semelhante à que sempre motivou o humor: traduzir uma situação difícil e por vezes dolorosa, em algo irônico, engraçado e tragável.

Mas qual o diferencial, então? A grande mudança pode estar na cultura participativa das redes, uma das grandes (e perigosas) moedas do ambiente digital. Dentro dessa dinâmica, não existem barreiras para a expressão dos usuários, ao mesmo tempo em que se permite o engajamento de quem estiver por ali. Ou seja, quem quiser pode viralizar e ser autor de uma peça engraçada – nem todos vão necessariamente conseguir atingir um grande público, mas qualquer pessoa tem o potencial de fazer isso apenas clicando em “enviar”. Não há mais, portanto, uma divisão clara entre quem conta a piada e quem ri da piada. 

A reprodução de memes na internet alterou, até mesmo, a compreensão sobre o significado de uma guerra – período normalmente associado a cenas tristes. Iniciada em fevereiro de 2022, a disputa entre Ucrânia e Rússia é objeto de piadas e memes na conta oficial do governo ucraniano no Twitter. Entre as sátiras postadas, improváveis para um perfil governamental, está um post contendo uma foto do presidente russo Vladimir Putin, com a frase “Procurado por crimes de guerra” e a legenda “Atributos especiais: mania imperial, complexo napoleônico e dedos que coçam no gatilho”. O uso do humor na propaganda geopolítica, que já existia, também se vale do canhão que qualquer pessoa pode utilizar para fazer mais gente rir: antes, dificilmente isso circularia fora de jornais e panfletos em Kiev. Agora, todos podem ser atingidos, em qualquer lugar – até os russos do outro lado do conflito. São os memes e as sátiras ganhando espaço até mesmo nos ambientes mais formais, como a política, e mostrando que humor é mesmo coisa séria.

Esse canhão nem sempre é apontado para inimigos. O uso da tecnologia para encontrar um alívio em situações difíceis também foi uma alternativa durante a pandemia, quando as restrições interromperam a possibilidade de contato próximo, mas seguimos buscando uns aos outros pela tela de celulares e computadores – e, frequentemente, rimos juntos, mesmo diante de um momento complicado. Memes, stickers, áudios e vídeos eram maneiras não só de compartilhar piadas sobre um momento em que todos tentávamos encontrar formas de vencer o tédio (e o medo), mas também de protestar de forma leve contra a inoperância dos governos em um contexto de crise. Como definiu o escritor irlandês Jonathan Swift há três séculos, o humor é o “único remédio contra o desespero de não poder acabar com o mal”. Mesmo com a constante  mudança na maneira como rimos e do quê rimos, certas verdades sobre nossa relação com o humor continuam as mesmas.


Fernanda Simoneto é repórter da Fronteira, estúdio especializado em reportagens. Tem textos publicados no jornal Extraclasse e na revista Veja Saúde.

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