Essa história eu li em algum lugar, talvez numa entrevista dada pelo Millôr, para explicar seu raríssimo, na verdade seu irrepetível nome: na certidão, firmada lá em 1923, seu nome era (pra ser) Milton, mas o tracinho que corta o T ficou deslocado, parecendo um circunflexo mal feito sobre o O, e o N final parecia um R: pronto, estava batizado o cara.
Na minha vida, o Millôr entrou em meados dos anos 70, e eu nem sei direito se ele andava já na Veja ou era em outro impresso que eu o lia. Soube que tinha ajudado a fazer o Pasquim, que eu li com fervor a partir de 1973, e mais adiante soube de outras façanhas, ainda mais remotas. Suas páginas na Veja eram de colecionar; em algum momento ele teve um desentendimento com a revista, então a mais prestigiosa do país, e migrou para a Istoé, sua concorrente, que em seus começos era mais jornalística, mais aberta, mais crítica ao regime do que a Veja.
Lembro bem do gosto estranho que era ler seu texto – era muito comum eu, adolescente e jovem, me botar a medir palavras, silêncios, proposições, alusões, citações, para entender por onde se movia aquela inteligência peculiar – e decifrar seus desenhos, sempre sujos, parecendo improvisados. Millôr terá sido um dos primeiros a fazer desenhos nos computadores pessoais daquele momento, quando o mundo digital engatinhava e o Brasil vivia atrasado uns quantos anos, pela “reserva de mercado” inventada pelos militares e saudada pelos nacionalistas em geral.
Isso do gosto estranho de seus textos (e suas ilustrações) tinha a ver com a posição singular do Millôr. Era evidente que ele abominava os milicos no poder; mas também era claro que ele não levava a esquerda livre, muito menos a esquerda dura, os comunistas em particular. Seus textos sempre vocalizavam uma variação em torno da defesa radical da liberdade.
Foi por tudo isso que, quando o Ivan Pinheiro Machado (o PM da L&PM) um dia me lembrou que Millôr faria cem anos agora, logo nos ocorreu produzir um especial da Parêntese em torno dele e de sua invulgar capacidade humorística – de um humor que não é de sacudir a barriga, mas de fazer cócegas no cérebro.
Daí partimos para os convites. O Breno Serafini, nosso colaborador em outros momentos, fez seu doutorado no tema, sendo então uma escolha natural. O Ivan foi logo intimado a escrever algumas lembranças do largo tempo em que foi editor e amigo do nosso centenário. E foi também o Ivan que indicou a excelente figura do Luiz Gravatá, amigo muito próximo do Millôr. Com os textos dos três, creio que a Parêntese abre uma janela para contemplar essa riqueza da cultura brasileira, escondida debaixo do nome Millôr Fernandes, um dos melhores na palavra e no traço de toda uma geração.
As imagens acima fizeram parte da exposição Millôr: Obra gráfica, apresentada no Instituto Moreira Salles Paulista, entre setembro 2018 e fevereiro de 2019, gentilmente cedidas pela instituição.